[002] Introdução à Geometria -- parte 1: a problemática do trivium e do quadrivium

 Neste post eu vou entrar propriamente no primeiro tema. Apesar de ser heterodoxo pelas doutrinas talvez sagradas das Artes Liberais, vale a pena dar uma espiada nos capítulos subsequentes, por alguns motivos.

Os primeiros deles diz respeito a intriguinhas bestas mesmo. Vamos a elas.


Por uma baita sorte, consegui acessar algumas aulas sobre o Quadrivium. Em especial, sobre a geometria; e, quando vi, percebi, primeiro, que cada um seguia uma proposta diferente. Segundo, que todas elas queriam tratar do Quadrivium enquanto o modelo clássico, o que é ótimo, mas isso me abriu o espaço para querer falar algumas coisas, já que não parecia estar sendo falado em lugar nenhum. E, na verdade, a ideia destes posts nasceu daqui.

As coisas que queria falar começam da seguinte maneira:

1- Parece haver uma imensa lacuna na compreensão do potencial da obra do educador americano Mortimer Adler, de quem Olavo muito se nutriu;

2- Quando se fala de Quadrivium, ou de Geometria, ou de Aritmética ou Matemática em geral, o que tem sido falado está restrito a uma pequena parcela de documentação, muito antiga, sem levar em conta, em suma, nem mesmo a Matemática tal como aconteceu influenciou a história da cultura artística;

3- Nem qualquer outra conexão entre a Matemática e as demais disciplinas parece ser feita, nem no nível mais evidente;

4- E na verdade me parece haver uma incompreensão, mas aqui pode ser um erro meu, de para que servia afinal o Quadrivium.


Aí você chega e me pergunta: "e você sabe desses assuntos?"

Rapaz...

varêia.

Como falei no post anterior, o que eu queria fazer aqui era pelo menos sugerir algumas ideias e temas, para que daí cada um fosse buscar a versão completa e mais verdadeira dos assuntos. Aliás, não é "o que eu queria", mas é o máximo que eu posso fazer kkkk

Sei que o ritmo está lento, mas vamos ponto a ponto e aí eu entro propriamente na Geometria.

(1) 

Mortimer Adler foi um educador extremamente prolífico, que trouxe para nós a noção de "educação liberal" (da qual a educação libertadora de Paulo Freire, no seu aspecto positivo, é só um embaçado reflexo). De minha parte, o que considero ser a parte mais importante da obra dele é o The Great Ideas Program. É que o cabra além de fazer parceria com a maior enciclopédia da época, a Enciclopédia Britânica, tecnicamente falecida recentemente na competição com a Wikipédia, ele reuniu uma grande quantidade de scholars e eles saíram vasculhando as principais ideias que formaram a nossa civilização, e quem seriam os responsáveis por isso. Daí surgiram os Great Books of Western World, apelidado de os Grandes Livros. Mas ele fez mais: ele listou que ideias foram essas, e a galera saiu listando as principais ideias, principais tópicos dentro dessas ideias, e onde foi falado sobre isso nos Grandes Livros, compondo uma espécie de "superindice" em 2 grossos volumes chamados Syntopicon. E daí além disso, junto a essas parcerias, ele compôs não só introduções aos Grandes Livros, a fim de que fosse possível para cada pessoa individualmente se educasse para compreender a conversação dessas ideias que formaram o mundo que conhecemos, como também, e aí entra meu ponto, ele compôs 10 volumes chamados coletivamente "O Programa das Grandes Ideias". Cada volume tem um tópico central, e em cada um há uma sequência de leituras, que vocês podem ver no link, com uma introdução e questões, elaboradas por alguns acadêmicos figurões do mundo anglo-saxão.

Eu não estou falando essas coisas de modo solto, calmem.
De minha parte, os volumes que mais me interessam no momento são o 3º e o 9º: aquele chama-se "Foundations of Science and Mathematics"; este, "Biology, Psychology and Medicine". Até o momento só tenho experiência com o terceiro volume, que dá uma amostra da discussão ligada às ciências e à matemática. Mas entendam: a ideia não é "Quadrivium", ou seja, estudar um modelo matemático do passado, é absorver cenas dessa tradição a fim de entender a sociedade contemporânea.


Então nós passeamos por Euclides, por assim dizer o fundador do pensamento cientificamente estruturado, Arquimedes, Ptolomeu, Copérnico, Pascal, Newton, Lavoisier etc.. Ele quer te fazer ler esses textos, te ensinar a lê-los. E você vai entender, por exemplo, que de fato não faz sentido pedir para ler o livro inteiro. Por exemplo, para que eu vou ler o tratado de química de Lavoisier, se: 1- eu não sou químico, 2- um químico não leria Lavoisier, mas sim um manual atualizado? Mas existem motivos absurdamente úteis para se conhecer os textos clássicos. É menos pelo conteúdo nominal e mais pela forma que eles propuseram, pela criatividade de soluções, que, por sua vez, foi uma resposta ao passado, e gerou influências no presente. Um traço central, em comum, é o processo de ordenação e nomeação da informação: Lavoisier, por exemplo, logo de cara sua grande preocupação era com o fato de que ele viveu no final da Alquimia para a entrada na Química, isto é, na remoção da camada simbólica para a ênfase na experimentação empírica. E daí as misturas (combinações de elementos) estavam absurdamente recheadas de nomes de ordens e fontes diferentes, numa confusão terrível; seu trabalho essencial, por exemplo, foi construir um sistema relacional de nomes, que, aliás, usamos até hoje (Ácidos e Bases, etc. etc.). Essa ideia é uma ideia muito poderosa, e nós já a vemos lá em Platão, mas aqui vemos o esforço de um pensador em constituir um novo modo de investigar as questões de uma área a partir dessa técnica.

Agora eu pergunto a você: PARA QUE RAIOS interessa ler o resto?
Talvez Foucault se fosse menos corporal adorasse fazer sessões em grupo lendo o resto do livro. Ou se espancar com as páginas, o que dá no mesmo. Mas voltando.

Ao longo dos seus estudos pode vir a ser útil ler o resto, mas só e unicamente só se esses estudos pedirem. Por exemplo: Mortimer Adler pede para que leiamos só o primeiro livro de Euclides (de 13), e para captar a proposta, a forma, a importância essencial de Euclides, isso basta definitivamente. Só que se você vasculhar mais sobre a importância na cultura humanística da matemática, eventualmente vai ouvir falar dos outros livros, e aí mesmo se não ler diretamente, vai conhecer sobre eles e talvez -- eu ainda nem comecei a sério minha vida de estudos -- no futuro possa precisar lê-lo por inteiro. Um segundo caso: Olavo teve que ler Newton. Vamos abrir em duas situações:
a) Se sua intenção for estudar a questão da luz, dos sentidos, da estética não no sentido artístico, mas no sentido de "como eu provo filosoficamente que os fenômenos existem e os sentidos têm valor tanto quanto o pensamento?", você vai entrar, em suma, numa divisão que de um lado tem o Óptica de Newton, e de outro tem o Tratado das Cores de Goethe. Como que se desenvolve essa questão? Eu não faço a mínima ideia, mas sei que Olavo cita o James Gibson nisso aí, mas, seja como for, é preciso retomar a treta;
b) Newton vs Leibniz. Existe um volume muito famoso de uma discussão em cartas de Leibniz com Clarke, um newtoniano, envolvendo diretamente os problemas da proposta da Física de Newton para, em suma, a inteligência humana. Aí não tem jeito, dá pra ler sem ler o trabalho de Newton e de Leibniz, mas vai ter que conhecer mais do que o que o Mortimer Adler pede.


Mas é isso que eu quero que vocês entendam: Mortimer Adler compõe como que uma disciplina de um curso universitário que te introduz em todas essas possibilidades, porque ele conecta esses livros numa discussão em comum.

E pasme: os livros são fáceis de ler. A gente cria uma aura mística aterrorizante de "os grandes sábios do passado", e aí fica terrível de simplesmente pegar o texto e ler as palavrinhas. É essa aura que o Mortimer Adler quer quebrar, e aí quando você a quebra, e lê com calma, vê que não tem mistério, e a linguagem é acessível. E ela é acessível, inclusive, porque se recebemos alguma educação escolar, essa educação foi necessariamente fundada nessas pessoas: nós já conhecemos os assuntos, só que os conhecemos de modo difuso, sem entender a raiz nem as implicações reais. E é isso o que o Mortimer Adler quer que tenhamos a chance de adquirir.


(2)

Muito provavelmente sob a influência de Mortimer Adler, surgiram vários volumes de estudos das áreas exatas pela sua influência na história da cultura. 

a) Salvo engano na aula 54 do COF, por exemplo, Olavo faz uma avaliação da influência na pintura do sumiço da noção simbólica, substituída por uma busca de um "realismo" pelo estudo da perspectiva. Ao que parece, isso foi influência direta da ascensão da cultura matemática.

b) Também tem outro recorte no Dialética Simbólica do Olavo (pesquisando aqui, parece ser no ensaio sobre O Silêncio dos Inocentes) em que Olavo fala contra o realismo psicológico. É a mesma disputa do tópico anterior, mas, se neste ela era aplicada nas artes visuais, aqui é no aspecto dos enredos. Exemplo banal: Sherlock Holmes, numa das últimas adaptações feitas, Sherlock, atuada por Benedict Cumberbatch, teve que ser representado como "sociopata" e "gay" para poder expressar sua inteligência e excentricidade. E há muitos escritores, como em novelas de TV, que carimbam de imediato o signo de Psicopatia ao invés de trabalhar toda a ambiguidade e potencial humano da ação, quer receba ou não algum rótulo. Os nomes científicos se tornaram um atalho para simplificar a complexidade do real, e isso, aliás, é efeito das matemáticas, mas, se querem saber, a coisa chega no seu nível mais louco e absurdo, mas ao mesmo tempo numa paródia perfeitamente verossímil,
a história de uma moça que tem "algum tipo de doença que certamente tem uma explicação científica" que enxerga nos cavalos rostos humanos. Isso é para justificar uma broderagem zoofílica. Acreditem, se isso é louco, mas esse tipo de recurso é usado e abusado (como a moça do cavalo) com uma frequência muito maior do que parece.

(Eduardo Cunha quando votou pelo Impeachment de Dilma disse as palavras imortalizadas que ninguém lembra mais na História de um país aleatório: Deus tenha misericórdia desta nação. Já eu tenho que admitir a implicação da frase:)

A frase não é só zoeira. A substituição do simbolismo pelo realismo implica nisso literalmente.

Esse tema em especifico não, mas o que leva a ele, ou seja, a influência da matemática na cultura, tem sido abordado em vários livros. Um deles, e eu cito ele porque ele trabalha o lado da pintura que complementa o que Olavo disse, é este:


Eu não conheço o suficiente do Morris Kline para afirmar de certeza, mas sei que a primeira edição do livro tinha outro nome (ele ganhou esse nome nas últimas décadas, mas o livro é lá da década de 60), chamava-se algo como "Matemática para as artes liberais". A proposta do livro e a mudança do nome parecem dizer respeito diretamente à influência de Mortimer Adler: foi ele quem trouxe essa noção e, ao final de sua vida e após a sua morte, infelizmente o seu trabalho ficou jogado às traças. Basta ver que o The Great Ideas Program não foi reeditado, e as instituições ligadas ao Mortimer Adler estão capengando há muito tempo. Outra delas, e eu sei porque os contatei há uns anos, virou basicamente "escolinha do MST". É osso. Diga-se de passagem, não só o Mortimer Adler: todas as iniciativas de cultura, cultura mesmo, sem ser entrar numa universidade e se especializar, foram todas, todas jogadas às traças, descontinuadas. Da metodologia de Gilberto Freyre, os movimentos modernistas de São Paulo ou do Nordeste, a proposta pedagógica de Mário Ferreira dos Santos, o Movimento Armorial do Ariano Suassuna, o mundo estético do Francisco Brennand, e, suspeito eu, mesmo a olavosfera fundada pelo Olavo, nenhuma inciativa foi suficiente para romper a barreira do Zeitgeist. Assim, a mudança do nome do livro: "Matemática para os não matemáticos".


(3)

Apesar de no tópico 1 e 2 eu já ter mostrado algumas implicações das matemáticas, ainda tem seu lado ativo e, digamos, positivo, já que nos anteriores a coisa ficou mais com cara de apocalipse.

Eu vou expandir esse tópico na parte 2 do post (ficou longo demais, precisa de 2 partes uhasuhsa), mas eu vou começar a sugerir aqui:

a) No Quadrivium, quando se fala de "Geometria" é essencialmente Euclides, a 1ª leitura proposta por Mortimer Adler; quando se fala de "Aritmética" é basicamente "Nicômaco" (por influência de Pitágoras). O primeiro estuda as formas, o segundo as relações. Das duas, Os Elementos de Euclides teve um maior poder de repercussão, menos pelo conteúdo e mais pelo que Euclides fez.

Euclides reuniu uma grande quantidade de conhecimento que se encontrava esparso, a respeito de proposições geométricas, e completou-as. Mas quando falamos de "completar" implica que elas precisam estar em um quadro de sentido com começo, meio e fim. Por exemplo: digamos que eu faça alguns poemas, e de repente eu olho pra eles e os percebo como um livro de poesias. Isto significa o seguinte: i) aqueles poemas sugeriram uma unidade formal, ii) essa unidade, por sua vez, inspirará a geração de novos poemas (ou seja, eu vou "completar" as proposições); iii) pela proposta do livro surge estilo, tema, modo de compor etc. etc.. Então vocês podem imaginar o Euclides como um estudioso de Matemática que de repente teve uma inspiração súbita e saiu coletando e ordenando o conhecimento disperso dentro de um novo quadro, que daí por diante se chamou oficialmente de Geometria. Os "elementos" significa que Euclides conseguiu achar nessas proposições a "essência elementar": ele reduziu tudo a um conjunto de proposições simples a partir das quais seria possível ordenar todas as proposições coletadas (e feitas por ele) em uma sequência lógica onde cada nova proposição era um acréscimo pequeno feito todo a partir das proposições anteriores. Por exemplo: digamos que eu vou aprender matemática do 0. Não faz sentido alguém me dar uma tabuada de somar pra memorizar se eu ainda não sei o que é soma, e nem faz sentido falar de soma se eu ainda não sei quais são os números. Em suma, mesmo que seja possível aprender a tabuada de somar sem saber nem soma nem números, é visível que existe uma cadeia lógica do mais simples ao mais complexo, onde o complexo se compõe desses elementos mais simples. Essa foi a grande marca que Euclides deixou na História. Se Platão ensinou Aristóteles a pegar um tema e decompor nas suas partes, Euclides ensinou a ajustar as partes numa ordem evolutiva.

b) Então, por causa disso, e por ensinar a ordenar uma disciplina como ninguém, Euclides inspirou toda a nossa história. A Filosofia sempre se volta para a Matemática e a olha como um modelo perfeito de ordem.  Kant fala disso, Hegel fala disso, antes dos dois Espinoza assumidamente construiu o "mos geometrico", um modo de compor um sistema inspirado em Euclides; e, diga-se de passagem, esse modelo é absurdamente similar ao modo como Tomás de Aquino compõe as suas sumas, ou Dante a sua Divina Comédia.

c) Mas não só eles! Newton compôs seus tratados no "more geometrico" (como quase todo mundo até uns 2 séculos atrás). Eu não consegui achar a citação, mas tenho quase certeza que meu menino Ferdinand de Saussure menciona ter sido inspirado ou pela "física" ou pela "matemática". As ciências "duras" inspirando as ciências humanas na constituição de um objeto e uma metodologia diz respeito direta e indiretamente a essa influência euclidiana. De Saussure nasce propriamente o estruturalismo, que significa uma metodologia mais "dura", firme, para as ciências humanas. Com seus aspectos positivos e negativos, isto é, o primeiro pela facilidade de organizar informações e novas ciências -- chegando mesmo à fundação da Parapsicologia do Padre Quevedo, para estudar "fenômenos parapsíquicos" -- e o segundo pelo mesmo problema das exatas em geral, isto é, por fechar o pensamento num quadro, quando, na realidade, as coisas são sempre mais complexas, o fato é que tudo isso é a nossa história e o conhecimento disponível para nós hoje. E assim entramos no tópico final.

(4)

Tradicionalmente falando, o Trivium diz respeito às artes da linguagem. O Quadrivium, às matemáticas. 

Se eu der uma generalizada na ideia, as primeiras dizem respeito à possibilidade do entendimento, ou, antes, à limpeza do desentendimento, na medida em que a linguagem é ao mesmo tempo o que permite a significação das coisas, mas também o que impede o acesso a essa significação, como se o mal domínio da língua fosse uma janela toda suja, e, dominá-la, um progressivo limpar que torna a visão mais clara.

O Trivium implicava, na Idade Média, no estudo do Latim, que era a língua oficial da cultura, e, com ela, o domínio das artes do uso linguístico. Mas no mundo contemporâneo eu imagino como seria se a gente acrescentasse também, por exemplo, documentos de lida com informação: 

(a) para se proteger das tentativas de engano ("Como mentir com estatísticas", "Como vencer um debate sem ter razão" (na edição do Olavo, que ensina a se defender), algo sobre propaganda etc.), 

(b) para entender os grandes dados, ou seja, a condição contemporânea de captação de significado no excesso quantitativo de informação ("Big Data: como extrair volume, variedade, velocidade e valor na avalanche de informação cotidiana", "Os meios de comunicação como extensão do homem", "Acredite em mim, estou mentindo" (dá uma explicação sobre o modo de fluxo de informação na sociedade digital)), 

(c) dominar os paradoxos do entendimento (e aí vai desde as dúvidas dos céticos sintetizadas na obra de Sexto Empírico, até as complexidades trazidas pelos cientistas céticos contemporâneos como Daniel Denett etc..), e talvez mais, mas não sei dizer ainda.

Mas já as artes do Quadrivium são ainda mais sutis. A pergunta inicial é "para que se queria aprender o Quadrivium, ou seja, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia?"

(Estão perdendo a chance de fazer uma escultura inspirada nesse momento da cultura ocidental. Yah biurifoooh)

Parece, mas, né, parece, que a ideia era basicamente formar um Dante ou um Tomás de Aquino. Ou seja, Aritmética e Geometria além de darem as bases da noção de conhecimento ordenado -- e, se bem ensinadas, a distinção entre os fatos reais e a representação abstrativa/ideal deles --, preparavam o aluno para as duas artes posteriores, que são uma aplicação da Aritmética (Música) e da Geometria (Astronomia), e, ao que parece, serviam para introduzir o aluno na Cosmologia da época.


Trata-se, em suma, do modelo geocêntrico circulado pelos 7 planetas, o céu das estrelas fixas (onde fica o zoodíaco) e o Empíreo. É essencialmente o mesmo modelo de Aristóteles (século IV a.C.), de Ptolomeu (século I d.C.), da santa Hildegarda (século XII), de Dante e Tomás de Aquino (século XIII) etc. etc..


Visao de Hildegarda. Aqui está numa qualidade ruim, mas esses ventos que sopram sobre a Terra são os 12 signos do zoodíaco, o círculo vermelho diz respeito às paixões a que tudo está sujeito, e tem a pessoa de fora conseguindo observar. Em outra visão, esse círculo vermelho é encabeçado por uma cabeça vermelha (provavelmente o diabo), mas, acima dele, tem a cabeça de Deus junto ao limite quadricular que fecha o quadro total, dando a ideia de que o Mal é o "príncipe" que de certo modo rege o mundo, mas acima dele tudo necessariamente ganha acesso a um sentido positivo e Bom, desde que você se abra para essa completude maior, que é Deus.

Ao que me parece, a função central do modelo cosmológico, quer ele seja verdadeiro ou não, é ensinar um pacotinho de habilidades que se resumem em: passar a tomar como possível uma ordem total, e levá-la em conta em cada fato. É nesse sentido que Tomás de Aquino ao começar a Suma contra os Gentios fala do sábio e sua "capacidade de ordenar", que Leibniz fala defende a hipótese de uma Teodiceia, ou seja, de um mundo totalmente ordenado por Deus, é também dessas coisas que Sócrates, Platão e Aristóteles estão discutindo. Porque é evidente que o mundo é um caos gigantesco, e quando se fala de ordem, é no sentido de que por mais caótica que sejam as coisas, elas podem ser categorizadasm medidas, e vistas como partes de uma ordem.


Eu adoro essa ênfase no Brasil Escola. "Já que no mundo há ordem!" Porque tudo na nossa época enfatiza a caoticidade das coisas. De um lado as ciências querem catalogar tudo e explicar tudo, de outro ela enfatiza em público o fato de que um meteoro pode bater a qualquer momento na Terra, de que a mente humana pode ser facilmente manipulada, de que não é possível medir com perfeição chuvas ou tornados, e nem o comportamento da economia etc. etc. Enfatiza as assimetrias, e a quebra dos modelos de ordem passados. Antes, por exemplo, a medicina, a psicologia, a matemática, a cosmogonia etc. era toda simbolizada a partir dos 4 elementos. Por um lado é ótimo que tenha sido quebrado esse simbolismo para se investigar mais a fundo cada uma dessas áreas; por outro, isso fragmentou a linguagem e diluiu essa capacidade humana de perceber como possibilidade, inclusive, rearticular essas várias linguagens numa nova linguagem simbólica, atualizada com as novidades. Isso é possível? É. É fácil? ... NÃO!

A quebra progressiva do simbolismo, que pessoas como o Olavo, o Gugu filho do Olavo, o Tales, também filho do Olavo, o Wolfgang Smith e, em geral, as religiões nos seus espaços mais aprofundados tentam evitar, gera a dissolução da inteligência humana. Quanto mais ele se quebra, menos essas habilidades de perceber ordem, que são as próprias habilidades que permitem a existência de cientistas, vão se dissolvendo, se perdendo no mar de confusão, e o homem vai voltando não a um estado de inocência primitiva do bom selvagem, mas a uma civilização louca e autodestrutiva.

A sanidade da linguagem, que os escritores no sentido antigo tentavam manter, é um dos lados da moeda da sanidade do simbolismo, que, por sua vez, são a moeda de troca para a nossa inteligência.

Mas não me parece fazer sentido estudar o Quadrivium enquanto modelo da Idade Média se o mundo contemporâneo invariavelmente avançou no quadro de conhecimentos disponíveis, e o caos já está presente. É preciso ordenar, em alguma medida, o caos contemporâneo, como Sócrates, Platão e Aristóteles fizeram em seu tempo, para que ele possa inspirar de volta a visão da ordem total. Nesse sentido, o Quadrivium clássico não é o objeto final dos estudos, mas uma inspiração que deve ser coletada para voltar-se para o mundo e seguir no trabalho de ordená-lo. Quiçá a História se repita e tenhamos um novo Aristóteles para reformular as ciências, depois um novo Tomás de Aquino para teologizá-las. Fora desse caminho, esses conhecimentos me parecem ou entretenimento (nada de errado aí) ou fetiche (huuuuuuuuuuuuuuuum). 



Quando Tomás de Aquino fala, por exemplo, da causa primeira, ele está falando do Empíreo e de como de lá para cá, no tempo e em "simultâneo", no dizer de Wolfgang Smith, existe a influência dessas várias camadas de fenômenos até a Terra. Mas esse sentido de causa primeira não faz mais sentido nenhum. Mas se alguém me diz, como Olavo, para você imaginar todas as equações e conhecimentos possíveis na sua forma mais perfeita (de que as equações e as ciências são recortes no tempo na tentativa de se aproximar destes), imaginá-las como um conjunto a partir do qual todo o mundo é a sua execução, e chamar isso de causa primeira, você tanto vai entender o modelo clássico quanto entender a contemporaneidade. Ou seja, se o mundo se inicia com o Big Bang, mas todo o comportamento das partículas, da velocidade, da sua junção possível em elementos, moléculas e seres complexos etc. etc., tudo isso precisa ser uma "possibilidade", senão não teria como acontecer. Essa soma das possibilidades, que Olavo chama de Possibilidade Universal, é a maneira contemporânea de explicitar a causa primeira. Se banhar nas palavras antigas sem essa tradução é viver como o Jimmy Bolha, ou ir pra água nessas bolhas gigantes com a intenção de tomar banho.

Fetiche.
.
Entretenimento (mas não vá achar que isso é o mesmo que andar sobre as águas, senão volta ao fetiche)

É preciso restaurar a ordem, mas restaurar a ordem é literalmente explicar o caos do mundo, não forçar a barra e querer impor a ordem do século XII 900 anos depois.

A Olavosfera

Pra ser sincero, existe, é claro, um terceiro sentido para mexer nesses assuntos, e que já se esboçou mais acima: é tentar manter os conhecimentos para que não sejam esquecidos. Porque sem essa inspiração do passado, seria preciso recomeçar do 0, então seria como viver no século XXI, mas nascido numa tribo isolada no meio do mato, sem roda nem fogo, e ter que reinventar essas coisas. O combate contemporâneo de progressistas e conservadores é entre o avanço do conhecimento no modelo atual, que implica também na fragmentação da ordem, e a tentativa de manter a inspiração passada da ordem.

Tecnicamente a roda olavette está sintetizando essa segunda função. De uma maneira extremamente caótica e cheia de brigas, mas tudo bem. Por exemplo, entre o Victor Bruno, que representa o Tradicionalismo, o Rafael Falcón, que representa sobretudo o Trivium clássico, e o Gugu, que representa a cosmologia clássica, existe uma divisão irreconciliável. Não nas pessoas em si, nas propostas. E entre esses três e o Olavo (a quem se soma Wolfgang Smith), que tenta fazer essa síntese dos dois mundos, também existem propostas distintas. E se pegar esses quatro modelos e comparar com a religião, no caso a cristã, que em seu cerne funda e depende dessa mesma noção de ordem, vai haver uma confusão tão imensa, mas tão imensa, que não me admira que sintamos que vivemos em um mundo caótico, ainda que verbalmente tentemos dizer o contrário, "por doutrina". Entre o Padre Quevedo, que nega o Milagre de Fátima, o quase-inquisidor Orlando Fedeli, cujo esforço da vida foi praticamente pra destruir toda a cosmologia clássica pra religião, e o Olavo, que enfatiza imensamente o Milagre de Fátima e cujos esforços trouxeram de volta a noção de ordem mesmo sem o uso direto da cosmologia clássica, existe um abismo brutal e nem de longe explorado pelos nossos estudiosos. Não obstante, esses são 3 nomes que moldaram áreas da nossa cultura, portanto áreas desse mesmo caos (na medida em que não são sequer descritos).

Quando se sai desse esforço e se volta para o que o pessoal fala, seja de Trivium, seja de Quadrivium, apesar da grande importância, não consigo deixar de sentir uma coceira e ficar, como Pingu, com aquele olhar apocalíptico, ao perceber que, se a roda olavette é (foi) o lugar mais frutífero da nossa cultura, agora parcialmente ocupado pelo ICLS, e nada dessas coisas se fazem presentes, o futuro.. não aparece muito apetecível.

roda os créditos, patrão.


E ainda assim, a vida continua, e, onde há vida, há esperança. E, onde há esperança, há a loucura.



Sigamos para o próximo post, mas só semana que vem, porque eu cansei e não foi pouco.



Até as próximas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[001] Metodologia do Seminário de Cultura

Pensando uma "história" do movimento olavette [vai ficar aqui temporariamente